sábado, 7 de julho de 2012

Arthur



Uma legião de mulheres de branco percorre a Ataulfo de Paiva todas as manhãs. Uma cena cotidiana e pouco estranha para os moradores do Leblon, mas peculiar para alguém nascido e criado no subúrbio como eu. A vida real parece imitar a ficção das novelas de Manoel Carlos, e mesmo após tantos anos me parece incompreensível porque as classes abastadas insistem em vestir suas negras babás de um uniforme tão alvo. Para mim, nunca deixou de parecer uma espécie de carimbo: uma permissão para circular entre a nobreza carioca, apesar da cara de pobre.
Não que eu enfrente este tipo de problema. Tenho ares aristocráticos, sou culta, magra e sorrio no elevador para as madames e suas respectivas babás. Assisto aos filmes do Estação, tomo café Expresso, leio a Marie Claire e para todos os efeitos, meu endereço é Rua Dias Ferreira, 458, apto 2696. Da minha janela, consigo acompanhar o movimento das secretárias do lar carregando nos carrinhos os filhos dos apostadores do Jockey, e uma de minhas atividades diárias é acompanhá-las à praça Antero de Quental.
Uma delas mora no meu prédio e cuida de um bebê de colo e um menino de 8 anos, 7 meses e 3 dias. Arthur. Arthur tem uma aparência andrógena e os olhos de um azul da cor do meu. Não sabe jogar bola. Tem um amigo imaginário chamado Andrews. Apanhou semana passada na escola e está tentando ler Monteiro Lobato.
Minhas manhãs podiam começar com um frescobol na praia, uma ida ao salão para alisar o cabelo, uma corridinha na Lagoa. Mas elas só começam depois de minhas discussões com Arthur. (Cecília, eu sou Cecília. Acho que esqueci de falar).
Tudo isso porque acho Monteiro Lobato insuportável. Tenho horror da Vaca Mocha, acho o Rabicó gay e o sabugo de milho, um esnobe. Emília é mimada, Narizinho insossa, Dona Benta uma matriarca anacrônica e os livros cheios do mesmo preconceito que faz com que as babás sejam todas parecidas com Tia Nastácia. Será que Dona Benta obrigava a boa senhora a vestir-se de branco?
 Eu e Arthur tivemos a conversa acima na terça-feira passada. Ele arregalou os olhos e pareceu não entender uma palavra do que eu disse. Acho incrível que ele seja tão vivo morando naquela casa. Sua mãe é uma inútil, incapaz de perceber o brilho e a perspicácia nos olhos do menino. Duvido que tenha aberto os cadernos da escola dele alguma vez. Tem oito anos e não faz ideia de como fazer o f. É perfeitamente alfabetizado, tem leitura fluente, já é bilíngue, mas não há Cristo que o faça fazer o f. E aquela imprestável não faz ideia de nada disso.
Tenho o maior orgulho de Arthur. Nessa quinta-feira de um Julho com ares de Maio, eu saí fresca e arejada de casa, disposta a pedir-lhe desculpas pela terça e a incentivá-lo a continuar nas leituras de Monteiro Lobato. Ele podia estar brincando no iPad do pai, mas, caramba!... Estava me sentindo tão culpada que teria passado na Travessa de Ipanema para comprar-lhe toda a coleção. Mas fiquei preocupada ao imaginar o pobre menino chegando em casa com presentes de uma desconhecida, e ter de dar explicações sobre o profundo laço de amizade que o unia com a vizinha do 2696.
O laço só é desconhecido até hoje pelos pais porque mais alheia que eles é a própria babá. Sempre me perguntei se ela não havia denunciado minha relação de anos com o menino por não se importar ou porque eu não tenho mesmo cara de pedófila ou assassina. Depois do nascimento de Alice, então, ela parece mesmo mais ocupada em limpar sua boca babada de suco de laranja do que dar atenção à vizinha louca ao lado de Arthur.
Agradeço todos os dias por ter comprado meu apartamento antes do boom imobiliário do Rio de Janeiro. Quem me vê andando apressada rumo à praça nessa quinta-feira, punindo-me mentalmente por estar atrasada e ciente de que já havia perdido meia hora de meu banho de sol matinal com Arthur, não pode imaginar o quanto sou um peixe fora d´água nesse ambiente. Minha cultura chega a ser, digamos, alienígena. Sou nova rica, vim de Irajá. Felizmente não precisei sonegar ou roubar, só me matar de estudar durante os 5 anos de faculdade para conseguir o emprego que me permite tirar onda de madame. Eu devia estar na Barra, mas já estava cansada de vir de longe só para ver Arthur. Aos 26 anos, achei que tinha direito a um pouco de qualidade de vida.
Ali está ele. Meu deus, essa gola pólo vermelha da Lacoste me faz querer morrer. Não combina com ele. Sorvete a essa hora da manhã, que criança de 8 anos toma sorvete de pistache? Eu nem sei o que é pistache. Acho que vou pesquisar no Google. Tenho mesmo muito que aprender com o menino.
Alice é feia de doer, parece a mãe. Arthur não é belo, mas é gracioso. Acho que vai ficar bonito quando crescer. Acho não, tenho certeza. Estarei ao lado dele quando passar da fase do Monteiro Lobato e evoluir para leituras mais maduras? Acho que vou comprar Meu Pé de Laranja Lima de presente. Ou O Menino do Dedo Verde. Será que já está pronto para ler O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá? Eu não entendi patavina quando li. Mas eu era uma criança suburbana e ignorante. Arthur, não. Arthur vai ser criado em berço de ouro. E se depender de mim, vai ser um lorde. Um lorde, não. Um dândi.
Arthur podia ser meu irmão. Meu sobrinho. Meu afilhado.
Mas, Deus, Arthur é meu filho.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Eu não sou poeta

Eu sou enfermo.
 
Que a arte é apolítica?
Eu sei.
Que a arte não é finalística?
Eu também sei.
 
Mas, como eu disse,
eu não sou artista.
Sou só um pobre diabo
tentando sobreviver.
 
½ dúzia de versos diários.
Eis a profilaxia
para ser
cartesiano
coerente
catedrático.
Para entrar todos os dias no elevador.
“Você trouxe o seu guarda-chuva?”
 
Costurei os lábios de pano de minha
velha boneca Loucura.
Loucura era casada com Escárnio.
Juntos atormentaram toda minha infância
até irem morar no baú
do sítio do meu avô.
 
Agora sinto cheiro de querosene.
Como quando minha mãe
incendiou sem querer
os sacos de estopa
onde na venda se guardavam os
grãos de milho.
 
O problema
é que de onde eu vim
todos eram viscerais.
 
E aqui,
só esse vazio.
 
Só essa solidão.

domingo, 22 de abril de 2012

Estio



Há quem diga:
que falem de amor os apaixonados.

Eu digo:
deus me livre.

Calem-se,
apaixonados,
e permaneçam calados
o quanto mais o puderem.

Ou melhor:
guardem suas paixões hiperbólicas
a seus amantes,
e poupem os ouvidos alheios
de tamanha cafonice.

Aos secos de coração e espírito,
eu clamo:
cantem ao mundo suas musas.

Para falar de amor é preciso estar estio
como a seca que castiga as matas
e os córregos raros do sertão,
onde crianças com verminose
confundem girinos
com peixinhos.

Só os dotados de serenidade
têm permissão divina
para tocar nesta
palavra
que é pedra.

Aquela que dizem,
Amor.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Carnaval


Um burburinho morno permeia a noite de verão na Rua General Osório. Os raros passantes fazem parecer fictícios os milhares de Arlequins que por ali estiveram algumas poucas horas antes. A cidade parece quieta como uma prostituta recém convertida à profissão, mas os foliões sabem que o silêncio é apenas mais uma máscara da cidade maravilhosa.

O estrago é notável. Quantidades colossais de lixo enfeiam a praça, mas o que denuncia mesmo a multidão ausente é o cheiro: um misto de mijo e perfume barato perceptível mesmo para o mais distraído dos olfatos. A conclusão óbvia é que o odor de vários homens não é a soma do cheiro individual de cada um. Como se as partículas olfativas fizessem amor no ar, e a prole resultante fosse única: uma fragância com DNA próprio.

Em meio aos últimos foliões que restaram – nativos olhando sobre os ombros temendo um assalto e gringos esperançosos à procura de sexo casual – está um único homem a observar tudo isto. Sentado no meio-fio, é uma figura curiosa, pois veste uma roupa maltrapilha e uma máscara de luxo, feminina, que um olhar agudo identificaria como uma autêntica peça veneziana de papel machê. No entanto, não há nem curiosidade nem curiosos para perceber que o homem está profundamente incomodado.

O incômodo é unicamente sensorial, e se justifica pelo cheiro do local. Não o comum, perceptível para todos, mas o que ele próprio exala: um odor perturbador de carne podre. Ao contrário do que se poderia objetar, não há animais mortos no local, um pombo ou gato desavisado que tenha sido atropelado por um bloco. Trata-se de um homem extremamente consciente, que reconhece em si mesmo o animal a exalar o cheiro putrefato.

Se houvesse humanos nas proximidades, o moribundo se envergonharia de incomodar a aristocracia carioca com seu odor inconveniente. Mas resguardado pela solidão da madrugada, ele pode manter o pouco de dignidade que lhe resta, e aceitar que está morrendo.

Levanta segurando as entranhas, como se esperasse que o fígado trocasse de lugar com o pâncreas ao menor sinal de distração sua. O homem está atento em busca do endereço de destino. Onde estará Jennifer a esta hora? Improvável que esteja em Copacabana nesta noite de Carnaval. Estará servindo um gringo neste exato momento? Não há tempo para espera. É preciso devolver-lhe a máscara e pegar o que havia lhe emprestado.

Jennifer roubara a máscara de uma viúva solitária há muitos carnavais. Surrupiara enquanto a velha dormia, e nunca se arrependera, depois que descobrira se tratar de uma madame falida que não tinha sequer dinheiro para pagá-la. Poderia ter lhe roubado as jóias, mas se contentara com a beleza daquela máscara que nunca havia visto igual.

A máscara seduzira o homem da mesma maneira que a prostituta. Na época iniciante na profissão, e portanto medrosa como todas as que começam nesta vida, a moça pedira sua arma emprestada para defender-se de eventuais violências que por ventura lhe infringissem. Em troca, oferecera como penhora o único bem em sua posse na época, a máscara. No entanto, ela teria pouca serventia em um momento fúnebre como este. Era preciso recuperar a arma, e o cheiro putrefato impunha todo o senso de urgência à situação.

Por sorte, um dos gringos à procura de sexo casual na praça havia encontrado justamente Jennifer. Devido ao seu estado alcoólico, ele ainda não havia se dado conta de que Jenny era uma prostituta, e tentava seduzi-la como a uma mulher comum. O moribundo se perguntava quanto tempo ainda demoraria para que o homem percebesse que a sedução de que Jenny precisava era constituída por US$ 70,00, mais as gorjetas pelos bons serviços prestados.

Antes, contudo, que o gringo pudesse ser iluminado com a brilhante descoberta, o moribundo vestido com a máscara interveio na conversa. Sua aparência, somada ao cheiro desconfortável que exalava, foi suficiente para fazer com que o estrangeiro resolvesse se retirar.

A Jenny também não foi preciso explicar muita coisa. Era uma amiga tão antiga – desde os tempos imemoriais em que ela não era uma prostituta e ele não era um moribundo – que reconheceria o momento de sua morte ainda que não houvesse o odor delator da decomposição. Silenciosamente, entregou-lhe a arma que estava na bolsa. Ao retirar a máscara veneziana para lhe devolver, com surpresa o moribundo ouviu, toma, é tua. Não se despediram.

Avenida Vieira Souto, 300, apto 801. Aproximou-se do portão mal iluminado do prédio e ficou a esperar o porteiro. O gordo e vagaroso guardião da morada carioca demorou em torno de 10 minutos para despertar e perceber que havia uma foliã esperando para retornar à casa. Foram mais 10 minutos para localizar o molho de chaves, necessário por conta da pane elétrica daquela noite.

Levou três tiros. O primeiro na mão direita para que fosse impedido de ligar para a polícia. O segundo na mão esquerda para o caso de ser canhoto. E o terceiro na cabeça para garantir que não acionasse a delegacia por telepatia. Prevenir é sempre melhor do que remediar.

Subir 8 andares não seria nada fácil no estado em que se encontrava. Ficou surpreso ao ver que ninguém havia acordado com os três tiros que dera e imaginou que eles poderiam ter sido facilmente confundidos com fogos de artifício. A cada lance de escada ele sentia que empestiava mais o corredor com o seu cheiro podre, e temia que fosse o cheiro, e não o barulho, que o delataria para os vizinhos do 801.

Na porta do apartamento, teve de aguardar mais 10 minutos até que alguém viesse atender a campainha insistentemente pressionada. Manteve o rosto inteiramente coberto pela máscara bem em frente ao olho mágico e esperou.

Do seu posto conseguia ouvir passos idosos se aproximando, sobrepostos à voz rouca de uma mulher que gritava com uma adolescente furiosa por ter sido desperta em plena madrugada. Os resmungos da velha iam se tornando mais audíveis conforme ela se aproximava para olhar através da porta.

Subitamente os grunhidos roucos foram interrompidos, cedendo espaço a um gemido ofegante de surpresa. Qual não foi a emoção da velha ao se deparar com a máscara que lhe havia sido roubada tantos anos atrás. O instinto senil cedeu espaço à falta de precaução, e a mulher demente abriu a porta para o mascarado.

Não gritou, nem pediu explicações. Serenamente foi conduzida ao banheiro pela autoridade da arma de fogo, empunhada com elegância feminina pela falsa foliã. Lá ficou trancada até que a ela viessem se juntar a neta aborrecente e os três poodles ridiculamente fantasiados para o carnaval.

Por alguns minutos o homem ficou sem saber o que fazer. Imaginou que estando assim tão perto da morte, talvez não fosse bom acrescentar mais 5 homicídios ao seu currículo. Ainda se perguntou, os cachorros contam? Deus vivia mandando que se sacrificassem as ovelhas, não devia ter muito apreço aos animais. Mas não estava em situação de arriscar.

Os roncos do seu estômago travavam uma disputa indômita com o seu fedor pelo posto da sensação que mais o incomodava. Mas o cheiro fétido o enjoava tanto que nenhuma refeição seria possível naquelas circunstâncias. Resolveu se banhar, na esperança de que o perfume de um sabonete pudesse ludibriar seu olfato.

Após se limpar, percebeu que seus trajes não eram apropriados para a finesse do apartamento. No armário encontrou trajes masculinos, os quais supôs serem do falecido marido da velha. O pobre defunto nunca deve ter desconfiado da máscara de fidelidade da esposa, composta por grossas camadas de rouge e pó-de-arroz poeirento.

Vestido com terno completo, agora estava digno de entrar na adega. Em meio à variedade de tintos à disposição, e dado seu total desconhecimento do assunto, escolheu os que estavam nas prateleiras mais altas, pois supôs que os mais raros e deliciosos deviam ser por conseguinte os menos acessíveis.

Precisava também de meia dúzia de queijos fedidos para compor a ceia. Após localizá-los no armário da cozinha, pôs a mesa e sentou-se para fazer a gloriosa refeição. Contava apenas com a companhia da máscara sobre a cadeira e dos choramingos dos prisioneiros do lavabo. Tão parecidos eram que já não conseguia identificar quais seriam os caninos e quais seriam os humanos. Em outros tempos, teria utilizado cinco balas certeiras para acabar com aquilo, começando pelos cachorros, esses seres odiáveis tratados como reis pela classe média carioca.

Como a proximidade da morte o deixava comovido, resolveu acabar com o incômodo ligando o som da sala. Tim Maia. Óbvio. Voltara à moda depois de alguns anos de relativo esquecimento. “Na vida a gente tem que entender/Que um nasce pra sofrer/Enquanto o outro ri”. Se foder. É por isso que pobre nesse país já nasce conformado.

Bebeu até ficar ébrio a ponto de achar que o sol raiava. Mas não era o álcool. De fato amanhecia. Tornou a vestir a máscara e aproximou-se cambaleante da varanda, levando a última garrafa em uma das mãos. A vista era um desbunde. A cidade permanecia silenciosa. Até os prisioneiros estavam calados. Temia tê-los asfixiado com o cheiro que a esta altura havia tomado todo o apartamento.

Perguntou-se quantos goles mais teria que tomar para ter a coragem de ir com a máscara de encontro ao asfalto. Apesar de quase defunto, diante da vista deslumbrante, a convicção que o guiara até o apartamento continuava acesa:

Se é para morrer como um cão, que seja como o melhor deles.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Eu sei que não te amo mais

quando passo a ver em seu corpo

apenas tecidos presos aos ossos

quando ao invés da sensualidade pulsante

de sua pele

o que sinto

é o toque de um frio organismo

quando vejo cada mitocôndria sua

produzindo ATP

para que diga as besteiras que diz

de carne e osso.

cálcio, lipídios e hormônios

uma alma?

com sorte,

talvez.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Glória à cerveja de garrafa

Os homens podem ser divididos em dois tipos: os que preferem chope e os que apreciam uma boa cerveja de garrafa. Um autor mais criterioso poderia incluir uma terceira categoria, ainda mais perversa que a primeira, a dos defensores do chopp, assim mesmo, com estrangeirismos alcoólicos. Diria que o indivíduo que vai tomar um chope tem ao menos a dignidade do samba, do futebol e da mulata a seu favor. O bebedor do chopp, nem isso. Não há São Sebastião ou outros deuses tupiniquins ao seu lado.

Mas como o autor que escreve é este, e não outro, fiquemos com as duas distinções primárias elucidadas acima. A partir delas, podemos traçar todas as características psicológicas dos dois tipos de homem. Talvez possamos até fazer prognósticos do futuro de cada um. Quem sabe se não somos capazes de adivinhar o amanhã, leitor, a partir da borra de cerveja que fica no copinho melado do boteco?

Bem, isso se é que você bebe mesmo cerveja de garrafa, porque este texto é aberto, sem censuras, e está disponível até para a espécie rival. Você deve conhecer, são aqueles frequentadores de bares extremamente asseados, segurando suas tulipas compridas e sustentando seus olhares esquivos, aqueles que enchem a boca para dizer: “Eu não entro em pé sujo”.

Pois bem. Quão diferente é o pé sujo! O tilintar dos copinhos baratos produz notas muito distintas daquelas emitidas pelas tulipas. Poderíamos dizer que a sinfonia resultante dos brindes é muito mais popular. Mais calorosa. Mais humana. Há comunhão na cerveja, como uma espécie de hóstia não sacramentada. Na mesma corrente brindam os pedreiros, os padres e os profetas, todos unidos por uma reza de cevada. Brindam às glórias e às desgraças de uma semana suada, carregada no ombro como um fardo ou no colo como um filho. Todos dão duro no batente: o do pedreiro é a obra, o do padre é a missa, o do profeta é a rua, mas todos têm o seu.

Ao contrário, há no chope um quê individualista. Cada qual com a sua tulipa. Cada um com os seus sofrimentos, as suas angústias, as suas imundícies. Não há partilha no chope, nem pode haver. Não é possível ver os copinhos se misturando na superfície da mesa de plástico, gerando dúvidas sobre os legítimos donos de cada um, e fazendo com que o mesmo copo tenha o prazer de beijar a boca de vários dos presentes, entre uma e outra beliscada na batata frita.

No átrio do boteco reúnem-se fiéis de todas as estirpes e classes sociais. A fé é unívoca entre todos os presentes: entre um e outro gole na gelada, a esperança de que o amanhã será melhor.

Achou este texto pretensioso? Herege, talvez?

Deixa estar, leitor. Você provavelmente bebe chope.