quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O racismo existe?


Antigamente, eu achava que não. Tinha lido em algum lugar que o problema do Brasil era social, não racial. Se eu não via muitos médicos, engenheiros ou advogados negros, era porque a maioria era pobre e não conseguia estudar.

Algum tempo depois eu li uma pesquisa indicando que um percentual mínimo dos cargos de chefia (gerências, diretorias) era ocupado por afrodescendentes. Mais um fato para corroborar a tese da exclusão social. Se não há negros qualificados, como esperar que uma percentagem grande deles ocupe altos cargos? Foi aí que começou a confusão.

O que a pesquisa apontava era que a quantidade de negros em funções de chefia era muito menor em proporção aos negros formados naquela profissão. Seria mais ou menos assim: se 10% dos engenheiros que se formam são afrodescendentes,  apenas 1% dos gerentes de engenharia o são. Os números não são esses, não guardei a pesquisa, mas talvez haja várias parecidas por aí.

Caramba, então quer dizer que um negro, qualificado, com sei-lá-o-quê em Harvard poderia perder o cargo para um branco nas mesmas condições, simplesmente por ser negro? Poderia. Pelo menos, em um critério de desempate.

Na minha escola havia poucos negros, justamente por ser um colégio particular e meio caro. Mas os que estudavam lá eram queridos e pareciam não ter problemas de relacionamento, inclusive afetivo, inclusive com brancos.

Mas aí vem aquela história de que no Rio de Janeiro somos todos miscigenados e a tolerância é maior. Mas será que seria assim no interior de São Paulo? E no interior de Minas Gerais?

Não sei.

Partindo da tese de que o racismo existe, independentemente da classe social e aceitando como pressuposto que há um filtro racial que diz aonde você pode chegar, surge outra pergunta.

O que eu tenho a ver com isso?

Sou branca. Ao menos no Brasil. Provavelmente na Europa eu serei considerada tão caucasiana quanto um zulu. Mas aqui em terra brasilis, sou branca.

Minha família é formada por um punhado de italianos pobres do sul que veio pra cá plantar café. O lado miscigenado ficou por conta do meu avô paterno, que veio da Bahia e tem um nariz pontudo que deixa ele com cara de árabe. O café rendeu, o povo estudou e viemos todos parar nesse limbo reclamão chamado classe média.

Quando eu tinha 17 anos, estava indo para a faculdade de ônibus. Janeiro, aquele sol que transforma qualquer um em um peru de Natal. Estava sentada do lado de um homem e coloquei minha mochila entre mim e ele para me proteger um pouco da insolação e não chegar assada na sala.

O problema começou quando o cara começou a me olhar feio. Muito feio. E eu, distraída como sou, demorei um bom tempo para entender o porquê. Ele era negro e a maneira como eu estava colocando a mochila entre nós dois dava a impressão de que eu queria distância. Acho que aquele homem achou que eu tinha problemas com a cor dele.

Alguns vão levantar a hipótese do racismo às avessas. “Só por que eu sou branquinha?”. Você é negro, eu sou branca. Não tenho culpa. Você que não tem autoestima e fica aí torcendo o nariz pra mim.

Não pensei assim. Morri de vergonha. Não sou racista, estava morgada, estava com sono, a aula na faculdade ia ser uma bosta e não reparei se ele era negro ou não. Não me ocorreu que um gesto tão simples pudesse deixar alguém tão puto.

Mas isso não tira minha responsabilidade. Não é desculpa para magoar alguém. A falta de atenção não pode se transformar em anestesia, insensibilidade. Só porque você não é racista, não quer dizer que o racismo não exista.

E o que os brancos poderiam fazer para ajudar? Não tenho a menor ideia.

De minha parte resolvi não aderir a nenhum discurso de racismo às avessas, porque apesar de todas as dificuldades econômicas que minha família possa ter passado, ela foi trazida para embranquecer o Brasil. Porque alguém achou que ser branco é legal e que a gente servia melhor pra tocar uma roça de café. Como agora eu vou dizer que estou sendo discriminada? Não consigo.

A segunda coisa que talvez ajude seja acreditar quando um negro diz que o racismo existe. Quem sou eu pra dizer que não? Deve ser horrível você passar por situações constrangedoras por causa da sua cor, tentar desabafar com alguém e a pessoa dizer que é tudo coisa da sua cabeça. Tipo “O Sexto Sentido”: os mortos não existem.

Bom, eu acho certos os fantasmas ainda fazem ronda por aí.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

pé de feijão

para sair do
estado de poesia
é preciso
ver brotar
um pé de feijão

vá logo menino
buscar água
algodão e aquele
pote de danoninho

senão versos
daninhos vão
crescer em seu
estômago,
subir pelo esôfago e
sair de
sua boca

amolando tia ivone
que quer
tanto
te ver
doutor

ao que eu respondo
fica tranquila
tia
que toda poesia
vai acabar neste
pé de feijão

Carpe gardinus

De que serve uma
dama-da-noite
aprisionada em
um vaso de
argila?

Meretriz domada
não vira condessa.
Não se pode esperar
do cacto o cheiro
do jasmim.

Mas mostro
com gosto
na janela
do loft
a minha
posse floril.

Nesta cidade
insípida
feita de
cimento e
cal
quero que
todos saibam que o
amor
tenho-o só
para mim.

Triste de quem
tem flor que
vai
com qualquer
jardim.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

História estranha


Para muitos, um CRM é o passaporte para uma carreira de sucesso. Mas não para ele. Se soubesse o que viria depois da faculdade, teria pensado duas vezes antes de adquirir esse número maldito.
Mudou-se para o interior de Goiás munido da esperança de ser o único psiquiatra da cidade. Era bastante jovem e esperava lidar com toda a sorte de transtornos em um local onde não havia sequer um cinema. Se para ele viver assim era enlouquecedor, esperava que também o fosse para os nativos. Se estivesse enganado, além de louco, ficaria pobre.
Nos primeiros meses, suas previsões catastróficas ameaçavam se tornar realidade. Passava os dias sozinho em um pequeno consultório alugado, sobrevivendo às custas da mesada que sua mãe lhe mandava às escondidas. Aproveitava esses momentos de solidão para estudar o DSM sonhando com o dia em que apareceria um cliente com uma doença rara e muito moderna. Então, poderia finalmente mostrar ao pai que não precisava de um emprego na firma de conserto de aquecedores elétricos que pertencia a sua família desde tempos tão remotos que desconfiava serem eles os próprios inventores da eletricidade.
Quando estava à beira de começar a receitar psicotrópicos às moscas, surgiram os primeiros clientes. Passada a euforia inicial, as semanas seguintes foram de profunda decepção. Nada além de adolescentes espinhentas atrás de antidepressivos. Não teve coragem de falar para procurarem um dermatologista porque infelizmente elas só precisavam de um pouco de Roacutan. Receitou uns placebos e aceitou sua mediocridade clínica.
Quando nos conformamos com as frutas dos galhos mais baixos, Deus nos dá um banquinho. Foi assim que ele conseguiu uma maçã bem vermelhinha e suculenta que um dia bateu à porta de seu consultório.
Era definitivamente um maluco de verdade. Seu olhar estava desbaratado, tinha cabelos castanhos que pareciam imundos e não falava coisa com coisa. O médico ansiava diante da oportunidade única de usar uma camisa de força.
Foi com certa decepção que percebeu que bastou uma água com açúcar para que o paciente ficasse mais calmo. A história que ouviu a seguir, contudo, logo reanimou seu espírito científico. Estava diante de um lunático.
Morava em uma cidade com apenas cinco mil habitantes a muitos quilômetros dali e de lá não teria saído se coisas estranhas não tivessem começado a acontecer há aproximadamente dez anos.
Começou com o Seu Anísio, mas ele já era velho, então ninguém deu muita importância. Acordou sem lembrar quem era. Por mais que lhe dissessem seu nome, as sílabas pronunciadas dissolviam-se na memória como algodão doce na boca. Levaram o pobre homem ao geriatra e de lá ele saiu diagnosticado como portador de Alzheimer.
Com Peneira, seu colega de escola, foi diferente. Não tinha mais que quinze anos e gozava de perfeita saúde, excetuando-se um certo retardo mental que as más línguas diziam ser fruto de muitos dias de trabalho debaixo do sol. Dizem que voltou para casa ao entardecer com a enxada nas costas sem se lembrar do nome de batismo ou do apelido de infância.
Nas semanas seguintes, um a um, todos os habitantes da cidade foram esquecendo seus prenomes, sobrenomes e alcunhas. Primeiro, esqueciam-se de seus próprios, depois, os de familiares e amigos. Ao cabo de menos de dois meses ninguém mais se recordava de quem era quem.
Evidentemente, recorreram aos documentos de identificação, mas todos só apresentavam os números de praxe, de identidades e carteirinhas do clube a cartões de banco e certidões de nascimento.
O prefeito sugeriu um mutirão para efetuar o registro civil de todos os habitantes da cidade. Durante cinco dias inteiros, os novos nomes escolhidos seriam anotados por equipes formadas por voluntários. Aproveitariam para fazer um recenseamento, coletando dados sobre os moradores do pequeno local onde a epidemia se espalhava. Acolhidas as sugestões do governante, padres aproveitaram para propor um novo batismo coletivo como forma de aproximar os fiéis de Deus e afastar aquela praga. Assim foi feito.
Ao cabo do quinto dia, a cidade inteira dormiu e acordou sem lembrar de nenhum dos nomes escolhidos.
Os otimistas de outrora se transformaram nos saqueadores de então: invadiam o pequeno comércio e pegavam tudo que suas mãos permitiam carregar, pois previam tempos difíceis. As carolas que antes rezavam para que Deus fosse piedoso começaram a usar saias curtas e blasfemar. Antecipando uma catástrofe, uma reunião de emergência foi convocada pelo prefeito no ginásio da escola municipal da cidade.
A algazarra era generalizada, não só pela superlotação, mas pela inviabilidade de comunicação na falta de vocativos. A sugestão que mudaria o curso da História não partiu do prefeito, nem do delegado, nem do doutor. Quem deu a ideia foi um simples agricultor. Poderiam identificar-se pelos números da carteira de identidade, disse o homem.
A proposta foi aprovada, mas com emendas. Decidiram utilizar o censo recém elaborado para criar uma identificação numérica, porém não aleatória. Os números seriam formados por dígitos que representariam características pessoais em ordem de importância, como profissão, sexo, estado civil e o bairro onde reside o identificado.
Foram dias ininterruptos de discussão até definirem quais algarismos representariam os advogados, os médicos, os magistrados, os policiais, os agricultores, os desocupados; que outros serviriam para demarcar a Zona Leste, Oeste, Norte e Sul. Após todos os cálculos combinatórios e a conclusão de que os números bastariam à identificação de toda a cidade, marcaram os dias para o cadastramento. Quando todos começavam a ir para suas casas, o delegado provocou um novo debate: o que seria feito caso alguém mudasse de profissão, de endereço ou - que horror! - de sexo? É certo que deveria comunicar às autoridades. Mas se não o fizesse? Ficaria impune? Isso poderia por em risco todo o complexo sistema que era, a essa altura, a salvação da cidade. Decidiram, então, que quaisquer alterações deveriam ser comunicadas, sob pena de multa.
Nos dias que se seguiram, o recadastramento correu com tranquilidade. Após dois meses, estavam todos acostumados com suas novas identificações. Ao final de dois anos, já nem se lembravam que houve um dia em que possuíam nomes.
Contudo, o clima de paz social começou a ser ameaçado pelos infratores. Em pouco tempo, as multas pelo descumprimento do dever de informar mudanças de ocupação ou endereço se tornaram a principal fonte arrecadatória do município. Apesar da riqueza que assomava aos cofres públicos, a situação gerava uma instabilidade insuportável para o sistema. Era preciso adotar medidas mais drásticas.
As eleições estavam próximas. O candidato da oposição surgiu com uma pauta promissora: primeiro, era preciso desincentivar as práticas anárquicas com uma punição mais severa, a prisão. Segundo, já passava da hora de sofisticar o sistema de identificação, incluindo informações relevantes que não poderiam ter ficado de fora, não fosse a patente incompetência do prefeito: opção política, preferência sexual e cor. Todos aplaudiram e o oposicionista tornou-se situacionista com amplo apoio popular nas eleições.
Por motivos que não nos é permitido conhecer, o volume de infrações continuava a crescer alarmantemente. Cabos eleitorais fiéis ao prefeito vencido espalhavam boatos de um esquema de fraude nos cartórios que permitia a qualquer agricultor residente na Zona Leste tornar-se um nobre doutor da Zona Sul. Bastava colocar os números certos nos lugares adequados. Pagando bem, que mal tem.
Ninguém entende como, mas o povo muda de opinião muito rápido. Um ano antes das novas eleições, o antigo prefeito já era o favorito com uma agenda eleitoral que gozava de amplo respaldo: inserir dígitos para identificar comunistas, prostitutas e ex-presidiários e instituir a pena de morte para quem se recusasse a se adequar aos novos tempos.
Os enforcamentos passaram a se realizar em praça pública, para comoção geral, pois era a primeira vez que os habitantes da cidade possuíam algum divertimento. Para facilitar a sofisticada identificação, todos passariam a ter de andar com seus documentos e a apresentá-los a quaisquer autoridades quando requisitados. Quem fosse flagrado indo à padaria sem eles, era imediatamente conduzido para julgamento.
Algumas rebeliões despontavam, mas eram logo reprimidas pela força policial. Os descontentes eram, evidentemente, os que se saíram largamente prejudicados pela identificação numérica, como ex-presidiários que não conseguiam emprego ou vítimas de perseguições políticas que tinham seus números fraudados e eram falsamente catalogadas como comunistas perigosos. O saldo de insurgentes mortos em combate era alto, o que era secretamente saudado pelos políticos como algo positivo para a higidez do sistema.
De todos esses insurgentes, nenhum foi visto como uma ameaça real. Até que um rapaz até então desconhecido veio com uma história estranha de que possuía uma coisa chamada nome, que era formada por letras e não dizia muita coisa. O seu era Arthur.
Este tal de Arthur passou a exigir que lhe chamassem assim, o que foi entendido como um arroubo exótico de sua criatividade juvenil. Os problemas começaram quando resolveu dar nomes às outras pessoas: primeiro, à família, depois aos amigos e ao bairro inteiro. Logo todos adotaram as novas designações e deixaram de lado a perversa identificação numérica.
Estava lançado o primeiro desafio político que as autoridades teriam de enfrentar. Diante de uma ameaça real à manutenção do sistema, uma coalizão de forças era necessária. Estava na hora de esquecerem temporariamente suas diferenças ideológicas para combater um inimigo comum.
Começaram pelos métodos corriqueiros de persuasão. De início, imaginaram instituir penas severas para os desertores, mas logo perceberam que não poderiam prender ou enforcar um bairro inteiro, ao menos não sem sofrer sérias represálias do restante da população. Era preciso recorrer a uma estratégia mais limpa e sofisticada: suborno.  A santíssima trindade: dinheiro para os pobres, contratos para os ricos, cargos para a classe média.
Todos aceitaram. Todos, menos um. Aquele que havia transmitido o germe da desobediência civil. Arthur. Para o garoto, precisariam recorrer a táticas de guerrilha. Ameaças de morte, pichações nos muros, pequenos atentados terroristas, tortura e, por fim, o valão.
O garoto era menos corajoso do que supunham e ao cabo da primeira bomba que explodiu no seu carro fugiu da cidade. Viajou durante semanas pegando carona nas estradas e só parou quando achou que já estava suficientemente longe. Nas cidades que cruzou tudo seguia na mais perfeita normalidade, numa profusão de Marias, Josés, Carolinas e Pedros que chegava a ser opressora. Começava a se perguntar se não teria inventado todo aquele delírio. Agora, estava diante de um médico desconhecido que provavelmente lhe julgaria um demente e o internaria no sanatório.
O psiquiatra, com toda a calma e a pompa que vinha treinando sozinho na frente do espelho, explicou-lhe que internações são démodé. Na verdade, Arthur sofria de esquizofrenia paranóica, mas poderia se tratar em seu consultório por um preço bastante módico, especial para os muito loucos, como ele. Os efeitos colaterais dos remédios que tomaria seriam bastante suaves, nada além de crises de vômito e inclinação para o suicídio, mas só nas primeiras seis semanas.
Arthur sentia-se realmente grato por ter encontrado um anjo como ele.
Foi uma reviravolta na vida profissional do médico. Ao final de alguns meses, o jovem se estabilizara e aprendera a separar a fantasia da realidade. Reconhecia, afinal, que toda a história fora uma invenção de seu subconsciente para lidar com a recente perda da mãe. Na cidade, todos diziam que o doutor curara o doido de pedra do forasteiro. Malucos de várias regiões vizinhas passaram a se consultar com o psiquiatra. O preço da consulta dobrou. A demanda era tanta que passou três anos inteiros sem tirar férias.
O trabalho era tão extenuante que já não conseguia dormir sem tomar calmantes. Tornou-se um dependente de Rivotril e esporadicamente tinha algumas crises de pânico. Resolveu tirar um mês de férias para viajar e espairecer um pouco. Escolheu uma cidade do outro lado do estado, famosa por seus lagos de águas fumegantes com propriedades medicinais. De carro, chegaria em três dias, aproveitando para parar em alguns outros locais.
No segundo dia de viagem, deparou-se com a estrada interditada e teve de fazer um novo caminho. Logo percebeu que seria necessário um pouso de emergência no primeiro motel de caminhoneiro que encontrasse, tal a chuva que caía. Passados alguns quilômetros e diante de uma crise de pânico iminente, dobrou à direita no que parecia ser a entrada de uma pequena cidade, na esperança de que lá houvesse algum tipo de pensão para passar a noite.
A cidade era pouco maior que uma vila. As casas estavam fechadas por conta da chuva e não se via ninguém nas ruas. Ficou preocupado diante da possibilidade real de não haver ali sequer uma hospedaria. Após algumas voltas nas ruelas, avistou um cemitério muito grande e bastante arborizado. Encontrou o portão aberto e resolveu entrar.
O cemitério impressionava por sua quantidade de jazigos, que não era proporcional a uma cidade com aquelas dimensões. A maioria das lápides era bastante simples e não havia inscrições com mensagens bonitas, só as costumeiras datas de nascimento e morte.
Ele poderia ter ido embora e aquele detalhe lhe teria escapado. Mas a providência divina fez com que se voltasse e percebesse que os jazigos não estavam identificados por nomes e que os números que via não eram datas.
Essa é a história que contam do novo internado do sanatório de Quirinópolis. Se você for forasteiro, pode ouvi-la dos habitantes locais pagando um preço módico, feito especialmente para os muito loucos. Como você.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Miopia

Zezinho
se passo e
não falo é
porque
não vejo
pior você
que viu
e faz que
não vê.

Bem te vi
por flor
nos cabelos
da Delinha.

Não sei
porque faço
desgosto.
Você não
sabe o que é
um jequitibá
e sempre
gostou das
jararacas.

Minha mãe
diz que
pior que casar
com primo
é ser
desquitada.

Por isso acho
que temos
chance.

Jamais tua,
Cecília.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Peraltice


Caiu dum pessegueiro
em cima do arame farpado.

Urrou de dor.

Rolou no chão
poeirento
pra ver
se passava.

Não passou.

O contrário,
ficou toda
rasgada e
suja de
esterco.

Bem que o padre falou.
Fiquei com dó.

Levei pra casa
lavei no sabão de coco
coloquei o remendo
e pus pra
quarar
pra ver
se fica
branquinha branquinha
essa tal
alma minha.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Analgesia


Escrevo porque dói.

Quando para de doer
tomo chá com rosquinhas
e durmo

pra no dia seguinte
começar a doer
de novo.

Do ofício


Escrever é como
mascar chicletes:
uma hora perde-se
o gosto.

É para quem tem
bom senso
e eu estou desvairada
de amor

pela década de noventa
pela tia do jardim-de-infância
pelas listas telefônicas
que não existem mais.

Quem olhar fininho
dentro de mim
vai ver um prado
arado por dois bois

e escondida
lá no fundo
trás duma árvore
eu
rindo
sem dentes
todos os meus
sete anos.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Passarinho

Sonhava com o dia em que ela beijaria suas mãos, doida e doída, singela e servil, os olhos secos mas os lábios úmidos dizendo que o amava, e que se era tão bela era para aformosear seu mundo, apenas o seu, tornando-o mais doce aos olhos, tão acostumados à pobreza e à sujeira do trabalho no cafezal.
Maria Inês tinha algo de anjo, algo de ninfa, muito de menina e ainda nada de mulher. Ao contrário das outras garotas da sua idade, seu corpo ainda não havia explodido em curvas; conservava os mesmos seios retos de quando a conhecera, tantos anos atrás. Na escola primária em que estudaram juntos, antes de Lélio abandonar os estudos, costumavam passar um longo tempo juntos. Ficava encantado quando a menina lhe mostrava sua merenda, biscoitos amanteigados finamente embrulhados em uma toalhinha de seda rendada. No começo, sentia-se envergonhado por seu pão com mortadela envolto em papel de pão. Buscava fazer seu lanche às escondidas, antes de encontrá-la, pois a sua pobreza parecia uma mácula aos olhos pequeninos de Maria Inês.
Com o passar dos dias, seu jeito simples foram deixando-o mais à vontade. A única coisa que continuava escondendo era seu cavalo, que amarrava no mato. Dizia que morava em um sítio não muito longe da escola, o que lhe dava o privilégio de ir a pé. A pequena invejava sua liberdade e o grande conhecimento que tinha das coisas do mundo, sobretudo de passarinhos.
De todos os encantos inebriantes que a menina lhe proporcionava, nenhum se comparava aos seus cabelos. Normalmente, chegava com tranças muito apertadas na sala de aula. Mas bastava chegar o intervalo para Maria Inês proceder a um delicioso ritual, em que xingava baixinho a mãe e destrançava agilmente as mechas castanhas (para Lélio, o murmúrio soava como uma reza divina). Cada cacho que caía em seus ombros moreninhos era o prenúncio de um ataque de ansiedade. Suas pernas bambeavam e era acometido por um desejo intenso de morrer.
Um dia, se encheu de súbita coragem. Vendo-a desembaraçando os cabelos, perguntou num galope:
“Posso pentear seus cachos?”
Nunca esqueceu a explosão de sininhos que ouviu: uma risada gostosa, franca, a mais bela música. E ela não fez nada senão lhe oferecer a escova.
A cena se repetiu muitas vezes ao longo do restante daquele santo quarto ano de grupo. Talvez a magia não tivesse sido interrompida tão cedo, se o pai de Lélio não tivesse tirado bruscamente o filho da escola.

(...)

“Roceiro!”
A palavra não saía da sua cabeça. Não se arrependeria dos murros que dera na cara de Osvaldo se depois não tivesse apanhado de vara de bambu do pai.. Não era mais aquele magricelo que os amigos diziam maricas (“só andas com aquela menina!”). Tornara-se um rapaz encorpado, com a pele curtida do sol e aqueles traços que os meninos adquirem quando têm de virar homens antes do tempo. Não ia mais admitir que gozassem do seu trabalho.
Para os vizinhos esnobes, Lélio fingia acreditar nas palavras do pai. “O serviço vai te tornar homem, moleque”. “Se adoeço tens tu de cuidar da roça sozinho”. Apesar dos longos sermões, entrecortados por muxoxos rudes, o menino nunca conseguiu achar que a enxada era seu caminho. Sentia falta da escola. Nas tardes de domingo, este dia santo, quando podia descansar graças ao catolicismo do pai, matava o tempo lendo um ou outro livro que conseguia pegar na biblioteca pública da cidade. Suspirava com José de Alencar, chamava Maria Inês de Ceci e jurava para si mesmo que um dia ainda fugiam para a Capital, onde ela seria professora e ele um doutor muito respeitado.
Desde que parara de estudar raramente via a pequena. Quando se cruzavam na rua, ela se limitava a lhe dar um leve e tímido aceno. De longe Lélio acompanhava os meninos que a rodeavam na sorveteria chique da cidade e ficava aliviado quando percebia que ela não lhes dava muita atenção.
A situação começou a mudar no dia em que viu Maria Inês na praça. Depois da missa, mocinhas e rapazolas mais crescidos procediam a uma estranha liturgia: os meninos contornavam a igreja em grupos, em sentido horário; as meninas se davam os braços e rodavam no sentido oposto. Quando dois grupos se encontravam, os olhares se cruzavam e as garotas se fingiam pudicas, coravam de propósito e seguiam aos risos. Vez ou outra havia um esbarrão intencional. Meio sem querer, estava formado um novo casal, que seguia de mãos dadas, sem dizer uma palavra, para o banco mais próximo ao chafariz.
Lélio nunca participou dos esbarrões por vários motivos. Primeiro, porque não tinha roupas adequadas. Suas calças eram curtas e encardidas. Segundo, porque não tinha nenhuma intenção de dar as mãos a nenhuma outra garota que não fosse Maria Inês. Terceiro, porque sonhava poder acarinhar seus cabelos de um jeito mais romântico, que não começasse com um estúpido encontrão em frente à igreja. Não conseguiria imaginar seu herói Peri começando o romance com Ceci dessa maneira.
No fundo, Lélio achava tudo artificial e bastante próximo do ridículo. As amigas de Maria Inês eram dentuças e tinham cabelos muito oleosos. Tentavam compensar essa ofensa estética encomendando vestidos caros da Capital, mas a única coisa que conseguiam era ficar mais empinadas e duras debaixo de tanta goma. A pequena, ao contrário, usava vestidos simples que comprava nas boutiques de preço mais módico da cidade. Era uma criaturinha miúda de alma simples e boa; talvez justamente por isso o rapaz tenha se decepcionado tanto ao vê-la na praça em meio àqueles que nada se pareciam com ela.
A decepção logo deu lugar ao desespero quando saiu do seu devaneio e viu que Maria Inês estava agora conversando com um rapaz. Mais dolorido ainda foi perceber que ela parecia se derreter em palavras divertidas que ele não conseguia ouvir. Passarinho ferido de estilingue, Lélio foi para a casa com a sensação de que alguma coisa se quebrara dentro dele.

(…)

Durante aqueles dias de luto, dedicou-se a aprofundar seus conhecimentos sobre aves. Pegou um enorme manual na biblioteca e começou a passar o dia investigando as características alimentares e habitacionais dos tucuruvis, bem-te-vis e inhambus-chororós.
Fechou o livro quando se deparou com uma foto de um tinguaçu-ferrugem, cuja tonalidade da pena lhe lembrou a cor dos cabelos de Maria Inês. Na rádio, tocava uma canção:

Eu não troco o meu ranchinho marradinho de cipó
Pruma casa na cidade, nem que seja bangalô
Eu moro lá no deserto, sem vizinho, eu vivo só
Só me alegra quando pia lá pra aqueles cafundó

É o inhambu-chitã e o xororó
É o inhambu-chitã e o xororó

Olhou de soslaio pra viola encostada do pai. Seu pai não dizia que estava na hora de virar homem? Pois então. Estava decidido: ia lhe compor uma música.

(...)

Depois de uma semana de trabalho árduo, estava pronta a canção. De súbito, teve uma ideia: por que não tentar tocar a música na rádio da cidade? Com certeza, seria mais inusitado do que fazer uma serenata à porta do seu casarão. Maria Inês seria docemente surpreendida no intervalo da rádio-novela.
Pegou emprestado a roupa de domingo do pai. Não era lá grandes coisas, o paletó estava até um pouco puído na parte debaixo da manga, mas se não se mexesse muito nem se notava. Tomou um banho demorado, pegou o violão e dirigiu-se à Avenida.
O problema é que Lélio era ingênuo demais para perceber que o locutor que o recebeu estava achando muita graça de tudo aquilo. Achou que era uma boa ideia aumentar a audiência no intervalo colocando um matuto besta para declamar um poeminha à Maria Inês, filha do médico da cidade, homem rico e muito cioso de sua única menina.

Meu bem querer
Quero deitar no seu regaço
Amaciar seus doces cachos
que para mim são o mau sofrer

Vem
meu passarinho pequenino
do canto sofrido
Minha andorinha tão frágil
que voa tão ágil

despedaçando o que restou
do meu ser.

Maria Inês
dos cabelos castanhos
perdoai esse poema tacanho
mas é que sem seu canto
eu não sei mais viver.

Se o locutor não tivesse explodido em risos ao final do último versinho, talvez Lélio fosse embora para casa sem saber que havia cometido um grande erro.

(...)

Para grande azar do menino, nesse dia o Dr. Fernando estava escutando a rádio-novela no consultório a pedido de uma velha encarquilhada que queria saber se Marcos Diego ia abandonar Joana naquele capítulo. Não explodiu em fúria por dois motivos: demorou a entender que a música se referia justamente a sua filha e só no final o locutor anunciou quem era o audacioso autor, um pobretão que morava num sítio lá para os lados de São José.
Precavidamente, Lélio passou a semana inteira em casa. Fingiu-se adoentado para o pai para não ter de ir colher café. Mas a memória do povo da cidade revelou-se muito melhor do que ele supunha.
Quando foi para o Centro, na semana seguinte, antes de chegar na venda do Beleléu foi surpreendido por um grupo de garotos que o cercaram e começaram a cantar em coro sua música, fazendo gestos obscenos. O menino tentou ignorar e seguir em frente. Mas Osvaldo estava na roda e achou que aquela era uma boa hora para se vingar, pois seu corpinho fraco seria compensado pelo volume de agressores. Lélio suportou uma saraivada de socos e chutes, mas tentou manter-se de pé. Apesar do seu corpanzil ser costumeiramente eficaz para evitar a chacota dos mauricinhos da cidade, nesse dia estava em tal desvantagem que terminou o triste episódio pisoteado por 10 pernas diferentes.
Estava com sérias suspeitas de que seu dente da frente ia cair a qualquer momento e seu nariz estava definitivamente quebrado. Não podia voltar para casa naquele estado. Se seu pai soubesse por que ele havia apanhado provavelmente lhe daria outra surra. Pensando nisso achou melhor passar uns dias no sítio de sua avó, uma senhorinha gorda e muito gentil que cuidaria dele sem contar nada a ninguém.
Gostava dos seus braços gordos e do cheiro que ela ainda guardava do seu avô, um misto de querosene e tabaco. Lá teria ficado por muito mais tempo se não começasse a sentir dó do pai que cuidava sozinho do cafezal. Além disso, já estava perfeitamente curado.
No caminho para casa, percebeu que já um mês havia se passado desde o dia em que se humilhara publicamente. Avistou na praça um menino que nunca havia visto. Estava sentado sozinho e parecia ler alguma coisa, mas o que mais chamava atenção era o fato de usar um estranho corte de cabelo, que não era moda na cidade. Ao aproximar-se curioso conteve um grito de dor: era Maria Inês.

(…)

Seu pai havia chegado colérico em casa naquele dia. Bem que sua mãe tentara impedi-lo, mas ao contrário do espírito suave da esposa, Dr. Fernando era um homem rude e machista. Com a tesoura de costura, fora cortando todos os seus cachos, um a um, até deixar seu cabelo curto e completamente irregular. Durante todos aqueles dias, Maria Inês não ousara sair de casa. Seu pai acabara com seu encanto.
Isso era o que ela dizia. A proximidade da menina, com ou sem as longas tranças, provocava em Lélio o mesmo efeito nefasto de antes. Percebia agora que sua paixão era devocional. Se havia nele alguma lascividade, ela ainda não havia se manifestado. Pouco importava seu corpo de homem. Seu amor ainda era de menino. A forma como Maria Inês aparecia ao mundo – se cega, se triste, se morta – não tinha importância. Que seu pai dissesse que não tinha juízo. Não tinha mesmo. Que garoto de 16anos o tem?
Afinal, quando os rapazolas se põem a caçar passarinhos, nunca veem que eles próprios é que são as presas....