Sonhava com o dia em que ela beijaria suas mãos, doida e doída,
singela e servil, os olhos secos mas os lábios úmidos dizendo que o
amava, e que se era tão bela era para aformosear seu mundo, apenas o
seu, tornando-o mais doce aos olhos, tão acostumados à pobreza e à
sujeira do trabalho no cafezal.
Maria Inês tinha algo de anjo, algo de ninfa, muito de menina e
ainda nada de mulher. Ao contrário das outras garotas da sua idade,
seu corpo ainda não havia explodido em curvas; conservava os mesmos
seios retos de quando a conhecera, tantos anos atrás. Na escola
primária em que estudaram juntos, antes de Lélio abandonar os
estudos, costumavam passar um longo tempo juntos. Ficava encantado
quando a menina lhe mostrava sua merenda, biscoitos amanteigados
finamente embrulhados em uma toalhinha de seda rendada. No começo,
sentia-se envergonhado por seu pão com mortadela envolto em papel de
pão. Buscava fazer seu lanche às escondidas, antes de encontrá-la,
pois a sua pobreza parecia uma mácula aos olhos pequeninos de Maria
Inês.
Com o passar dos dias, seu jeito simples foram deixando-o mais à
vontade. A única coisa que continuava escondendo era seu cavalo, que
amarrava no mato. Dizia que morava em um sítio não muito longe da
escola, o que lhe dava o privilégio de ir a pé. A pequena invejava
sua liberdade e o grande conhecimento que tinha das coisas do mundo,
sobretudo de passarinhos.
De todos os encantos inebriantes que a menina lhe proporcionava,
nenhum se comparava aos seus cabelos. Normalmente, chegava com
tranças muito apertadas na sala de aula. Mas bastava chegar o
intervalo para Maria Inês proceder a um delicioso ritual, em que
xingava baixinho a mãe e destrançava agilmente as mechas castanhas
(para Lélio, o murmúrio soava como uma reza divina). Cada cacho que
caía em seus ombros moreninhos era o prenúncio de um ataque de
ansiedade. Suas pernas bambeavam e era acometido por um desejo
intenso de morrer.
Um dia, se encheu de súbita coragem. Vendo-a desembaraçando os
cabelos, perguntou num galope:
“Posso pentear seus cachos?”
Nunca esqueceu a explosão de sininhos que ouviu: uma risada gostosa,
franca, a mais bela música. E ela não fez nada senão lhe oferecer
a escova.
A cena se repetiu muitas vezes ao longo do restante daquele santo
quarto ano de grupo. Talvez a magia não tivesse sido interrompida
tão cedo, se o pai de Lélio não tivesse tirado bruscamente o filho
da escola.
(...)
“Roceiro!”
A palavra não saía da sua cabeça. Não se arrependeria dos murros
que dera na cara de Osvaldo se depois não tivesse apanhado de vara
de bambu do pai.. Não era mais aquele magricelo que os amigos
diziam maricas (“só andas com aquela menina!”). Tornara-se um
rapaz encorpado, com a pele curtida do sol e aqueles traços que os
meninos adquirem quando têm de virar homens antes do tempo. Não ia
mais admitir que gozassem do seu trabalho.
Para os vizinhos esnobes, Lélio fingia acreditar nas palavras do
pai. “O serviço vai te tornar homem, moleque”. “Se adoeço
tens tu de cuidar da roça sozinho”. Apesar dos longos sermões,
entrecortados por muxoxos rudes, o menino nunca conseguiu achar que a
enxada era seu caminho. Sentia falta da escola. Nas tardes de
domingo, este dia santo, quando podia descansar graças ao
catolicismo do pai, matava o tempo lendo um ou outro livro que
conseguia pegar na biblioteca pública da cidade. Suspirava com José
de Alencar, chamava Maria Inês de Ceci e jurava para si mesmo que um
dia ainda fugiam para a Capital, onde ela seria professora e ele um
doutor muito respeitado.
Desde que parara de estudar raramente via a pequena. Quando se
cruzavam na rua, ela se limitava a lhe dar um leve e tímido aceno.
De longe Lélio acompanhava os meninos que a rodeavam na sorveteria
chique da cidade e ficava aliviado quando percebia que ela não lhes
dava muita atenção.
A situação começou a mudar no dia em que viu Maria Inês na praça.
Depois da missa, mocinhas e rapazolas mais crescidos procediam a uma
estranha liturgia: os meninos contornavam a igreja em grupos, em
sentido horário; as meninas se davam os braços e rodavam no sentido
oposto. Quando dois grupos se encontravam, os olhares se cruzavam e
as garotas se fingiam pudicas, coravam de propósito e seguiam aos
risos. Vez ou outra havia um esbarrão intencional. Meio sem querer,
estava formado um novo casal, que seguia de mãos dadas, sem dizer
uma palavra, para o banco mais próximo ao chafariz.
Lélio nunca participou dos esbarrões por vários motivos.
Primeiro, porque não tinha roupas adequadas. Suas calças eram
curtas e encardidas. Segundo, porque não tinha nenhuma intenção de
dar as mãos a nenhuma outra garota que não fosse Maria Inês.
Terceiro, porque sonhava poder acarinhar seus cabelos de um jeito
mais romântico, que não começasse com um estúpido encontrão em
frente à igreja. Não conseguiria imaginar seu herói Peri
começando o romance com Ceci dessa maneira.
No fundo, Lélio achava tudo artificial e bastante próximo do
ridículo. As amigas de Maria Inês eram dentuças e tinham cabelos
muito oleosos. Tentavam compensar essa ofensa estética encomendando
vestidos caros da Capital, mas a única coisa que conseguiam era
ficar mais empinadas e duras debaixo de tanta goma. A pequena, ao
contrário, usava vestidos simples que comprava nas boutiques de
preço mais módico da cidade. Era uma criaturinha miúda de alma
simples e boa; talvez justamente por isso o rapaz tenha se
decepcionado tanto ao vê-la na praça em meio àqueles que nada se
pareciam com ela.
A decepção logo deu lugar ao desespero quando saiu do seu devaneio
e viu que Maria Inês estava agora conversando com um rapaz. Mais
dolorido ainda foi perceber que ela parecia se derreter em palavras
divertidas que ele não conseguia ouvir. Passarinho ferido de
estilingue, Lélio foi para a casa com a sensação de que alguma
coisa se quebrara dentro dele.
(…)
Durante aqueles dias de luto, dedicou-se a aprofundar seus
conhecimentos sobre aves. Pegou um enorme manual na biblioteca e
começou a passar o dia investigando as características alimentares
e habitacionais dos tucuruvis, bem-te-vis e inhambus-chororós.
Fechou o livro quando se deparou com uma foto de um
tinguaçu-ferrugem, cuja tonalidade da pena lhe lembrou a cor dos
cabelos de Maria Inês. Na rádio, tocava uma canção:
Eu não troco o meu ranchinho marradinho de cipó
Pruma casa na cidade, nem que seja bangalô
Eu moro lá no deserto, sem vizinho, eu vivo só
Só me alegra quando pia lá pra aqueles cafundó
É o inhambu-chitã e o xororó
É o inhambu-chitã e o xororó
Pruma casa na cidade, nem que seja bangalô
Eu moro lá no deserto, sem vizinho, eu vivo só
Só me alegra quando pia lá pra aqueles cafundó
É o inhambu-chitã e o xororó
É o inhambu-chitã e o xororó
Olhou de soslaio pra viola encostada do pai. Seu pai não dizia que
estava na hora de virar homem? Pois então. Estava decidido: ia lhe
compor uma música.
(...)
Depois de uma semana de trabalho árduo, estava pronta a canção. De
súbito, teve uma ideia: por que não tentar tocar a música na rádio
da cidade? Com certeza, seria mais inusitado do que fazer uma
serenata à porta do seu casarão. Maria Inês seria docemente
surpreendida no intervalo da rádio-novela.
Pegou emprestado a roupa de domingo do pai. Não era lá grandes
coisas, o paletó estava até um pouco puído na parte debaixo da
manga, mas se não se mexesse muito nem se notava. Tomou um banho
demorado, pegou o violão e dirigiu-se à Avenida.
O problema é que Lélio era ingênuo demais para perceber que o
locutor que o recebeu estava achando muita graça de tudo aquilo.
Achou que era uma boa ideia aumentar a audiência no intervalo
colocando um matuto besta para declamar um poeminha à Maria Inês,
filha do médico da cidade, homem rico e muito cioso de sua única
menina.
Meu bem querer
Quero deitar no seu regaço
Amaciar seus doces cachos
que para mim são o mau sofrer
Vem
meu passarinho pequenino
do canto sofrido
Minha andorinha tão frágil
que voa tão ágil
despedaçando o que restou
do meu ser.
Maria Inês
dos cabelos castanhos
perdoai esse poema tacanho
mas é que sem seu canto
eu não sei mais viver.
Se o locutor não tivesse explodido em risos ao final do último
versinho, talvez Lélio fosse embora para casa sem saber que havia
cometido um grande erro.
(...)
Para grande azar do menino, nesse dia o Dr. Fernando estava escutando
a rádio-novela no consultório a pedido de uma velha encarquilhada
que queria saber se Marcos Diego ia abandonar Joana naquele capítulo.
Não explodiu em fúria por dois motivos: demorou a entender que a
música se referia justamente a sua filha e só no final o locutor
anunciou quem era o audacioso autor, um pobretão que morava num
sítio lá para os lados de São José.
Precavidamente, Lélio passou a semana inteira em casa. Fingiu-se
adoentado para o pai para não ter de ir colher café. Mas a memória
do povo da cidade revelou-se muito melhor do que ele supunha.
Quando foi para o Centro, na semana seguinte, antes de chegar na
venda do Beleléu foi surpreendido por um grupo de garotos que o
cercaram e começaram a cantar em coro sua música, fazendo gestos
obscenos. O menino tentou ignorar e seguir em frente. Mas Osvaldo
estava na roda e achou que aquela era uma boa hora para se vingar,
pois seu corpinho fraco seria compensado pelo volume de agressores.
Lélio suportou uma saraivada de socos e chutes, mas tentou manter-se
de pé. Apesar do seu corpanzil ser costumeiramente eficaz para
evitar a chacota dos mauricinhos da cidade, nesse dia estava em tal
desvantagem que terminou o triste episódio pisoteado por 10 pernas
diferentes.
Estava com sérias suspeitas de que seu dente da frente ia cair a
qualquer momento e seu nariz estava definitivamente quebrado. Não
podia voltar para casa naquele estado. Se seu pai soubesse por que
ele havia apanhado provavelmente lhe daria outra surra. Pensando
nisso achou melhor passar uns dias no sítio de sua avó, uma
senhorinha gorda e muito gentil que cuidaria dele sem contar nada a
ninguém.
Gostava dos seus braços gordos e do cheiro que ela ainda guardava do
seu avô, um misto de querosene e tabaco. Lá teria ficado por muito
mais tempo se não começasse a sentir dó do pai que cuidava sozinho
do cafezal. Além disso, já estava perfeitamente curado.
No caminho para casa, percebeu que já um mês havia se passado desde
o dia em que se humilhara publicamente. Avistou na praça um menino
que nunca havia visto. Estava sentado sozinho e parecia ler alguma
coisa, mas o que mais chamava atenção era o fato de usar um
estranho corte de cabelo, que não era moda na cidade. Ao
aproximar-se curioso conteve um grito de dor: era Maria Inês.
(…)
Seu pai havia chegado colérico em casa naquele dia. Bem que sua mãe
tentara impedi-lo, mas ao contrário do espírito suave da esposa,
Dr. Fernando era um homem rude e machista. Com a tesoura de costura,
fora cortando todos os seus cachos, um a um, até deixar seu cabelo
curto e completamente irregular. Durante todos aqueles dias, Maria
Inês não ousara sair de casa. Seu pai acabara com seu encanto.
Isso era o que ela dizia. A proximidade da menina, com ou sem as
longas tranças, provocava em Lélio o mesmo efeito nefasto de antes.
Percebia agora que sua paixão era devocional. Se havia nele alguma
lascividade, ela ainda não havia se manifestado. Pouco importava seu
corpo de homem. Seu amor ainda era de menino. A forma como Maria Inês
aparecia ao mundo – se cega, se triste, se morta – não tinha
importância. Que seu pai dissesse que não tinha juízo. Não tinha
mesmo. Que garoto de 16anos o tem?
Afinal, quando os rapazolas se põem a caçar passarinhos, nunca
veem que eles próprios é que são as presas....