Uma legião de mulheres de branco percorre a Ataulfo de Paiva todas as
manhãs. Uma cena cotidiana e pouco estranha para os moradores do Leblon, mas
peculiar para alguém nascido e criado no subúrbio como eu. A vida real parece
imitar a ficção das novelas de Manoel Carlos, e mesmo após tantos anos me
parece incompreensível porque as classes abastadas insistem em vestir suas
negras babás de um uniforme tão alvo. Para mim, nunca deixou de parecer uma
espécie de carimbo: uma permissão para circular entre a nobreza carioca, apesar
da cara de pobre.
Não que eu enfrente este tipo de problema. Tenho ares aristocráticos, sou
culta, magra e sorrio no elevador para as madames e suas respectivas babás.
Assisto aos filmes do Estação, tomo café Expresso, leio a Marie Claire e para
todos os efeitos, meu endereço é Rua Dias Ferreira, 458, apto 2696. Da minha
janela, consigo acompanhar o movimento das secretárias do lar carregando nos
carrinhos os filhos dos apostadores do Jockey, e uma de minhas atividades diárias
é acompanhá-las à praça Antero de Quental.
Uma delas mora no meu prédio e cuida de um bebê de colo e um menino de 8
anos, 7 meses e 3 dias. Arthur. Arthur tem uma aparência andrógena e os olhos
de um azul da cor do meu. Não sabe jogar bola. Tem um amigo imaginário chamado
Andrews. Apanhou semana passada na escola e está tentando ler Monteiro Lobato.
Minhas manhãs podiam começar com um frescobol na praia, uma ida ao salão para
alisar o cabelo, uma corridinha na Lagoa. Mas elas só começam depois de minhas
discussões com Arthur. (Cecília, eu sou Cecília. Acho que esqueci de falar).
Tudo isso porque acho Monteiro Lobato insuportável. Tenho horror da Vaca
Mocha, acho o Rabicó gay e o sabugo de milho, um esnobe. Emília é mimada,
Narizinho insossa, Dona Benta uma matriarca anacrônica e os livros cheios do
mesmo preconceito que faz com que as babás sejam todas parecidas com Tia
Nastácia. Será que Dona Benta obrigava a boa senhora a vestir-se de branco?
Eu e Arthur tivemos a conversa
acima na terça-feira passada. Ele arregalou os olhos e pareceu não entender uma
palavra do que eu disse. Acho incrível que ele seja tão vivo morando naquela
casa. Sua mãe é uma inútil, incapaz de perceber o brilho e a perspicácia nos
olhos do menino. Duvido que tenha aberto os cadernos da escola dele alguma vez.
Tem oito anos e não faz ideia de como fazer o f.
É perfeitamente alfabetizado, tem leitura fluente, já é bilíngue, mas não há
Cristo que o faça fazer o f.
E aquela imprestável não faz ideia de nada disso.
Tenho o maior orgulho de Arthur. Nessa quinta-feira de um Julho com ares
de Maio, eu saí fresca e arejada de casa, disposta a pedir-lhe desculpas pela
terça e a incentivá-lo a continuar nas leituras de Monteiro Lobato. Ele podia
estar brincando no iPad do pai, mas, caramba!... Estava me sentindo tão culpada
que teria passado na Travessa de Ipanema para comprar-lhe toda a coleção. Mas
fiquei preocupada ao imaginar o pobre menino chegando em casa com presentes de
uma desconhecida, e ter de dar explicações sobre o profundo laço de amizade que
o unia com a vizinha do 2696.
O laço só é desconhecido até hoje pelos pais porque mais alheia que eles
é a própria babá. Sempre me perguntei se ela não havia denunciado minha relação
de anos com o menino por não se importar ou porque eu não tenho mesmo cara de
pedófila ou assassina. Depois do nascimento de Alice, então, ela parece mesmo
mais ocupada em limpar sua boca babada de suco de laranja do que dar atenção à
vizinha louca ao lado de Arthur.
Agradeço todos os dias por ter comprado meu apartamento antes do boom imobiliário do Rio de Janeiro. Quem
me vê andando apressada rumo à praça nessa quinta-feira, punindo-me mentalmente
por estar atrasada e ciente de que já havia perdido meia hora de meu banho de
sol matinal com Arthur, não pode imaginar o quanto sou um peixe fora d´água
nesse ambiente. Minha cultura chega a ser, digamos, alienígena. Sou nova rica,
vim de Irajá. Felizmente não precisei sonegar ou roubar, só me matar de estudar
durante os 5 anos de faculdade para conseguir o emprego que me permite tirar
onda de madame. Eu devia estar na Barra, mas já estava cansada de vir de longe só
para ver Arthur. Aos 26 anos, achei que tinha direito a um pouco de qualidade
de vida.
Ali está ele. Meu deus, essa gola pólo vermelha da Lacoste me faz querer
morrer. Não combina com ele. Sorvete a essa hora da manhã, que criança de 8
anos toma sorvete de pistache? Eu nem sei o que é pistache. Acho que vou
pesquisar no Google. Tenho mesmo muito que aprender com o menino.
Alice é feia de doer, parece a mãe. Arthur não é belo, mas é gracioso.
Acho que vai ficar bonito quando crescer. Acho não, tenho certeza. Estarei ao
lado dele quando passar da fase do Monteiro Lobato e evoluir para leituras mais
maduras? Acho que vou comprar Meu Pé de Laranja Lima de presente. Ou O Menino
do Dedo Verde. Será que já está pronto para ler O Gato Malhado e a Andorinha
Sinhá? Eu não entendi patavina quando li. Mas eu era uma criança suburbana e
ignorante. Arthur, não. Arthur vai ser criado em berço de ouro. E se depender
de mim, vai ser um lorde. Um lorde, não. Um dândi.
Arthur podia ser meu irmão. Meu sobrinho. Meu afilhado.
Mas, Deus, Arthur é meu filho.