quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Carnaval


Um burburinho morno permeia a noite de verão na Rua General Osório. Os raros passantes fazem parecer fictícios os milhares de Arlequins que por ali estiveram algumas poucas horas antes. A cidade parece quieta como uma prostituta recém convertida à profissão, mas os foliões sabem que o silêncio é apenas mais uma máscara da cidade maravilhosa.

O estrago é notável. Quantidades colossais de lixo enfeiam a praça, mas o que denuncia mesmo a multidão ausente é o cheiro: um misto de mijo e perfume barato perceptível mesmo para o mais distraído dos olfatos. A conclusão óbvia é que o odor de vários homens não é a soma do cheiro individual de cada um. Como se as partículas olfativas fizessem amor no ar, e a prole resultante fosse única: uma fragância com DNA próprio.

Em meio aos últimos foliões que restaram – nativos olhando sobre os ombros temendo um assalto e gringos esperançosos à procura de sexo casual – está um único homem a observar tudo isto. Sentado no meio-fio, é uma figura curiosa, pois veste uma roupa maltrapilha e uma máscara de luxo, feminina, que um olhar agudo identificaria como uma autêntica peça veneziana de papel machê. No entanto, não há nem curiosidade nem curiosos para perceber que o homem está profundamente incomodado.

O incômodo é unicamente sensorial, e se justifica pelo cheiro do local. Não o comum, perceptível para todos, mas o que ele próprio exala: um odor perturbador de carne podre. Ao contrário do que se poderia objetar, não há animais mortos no local, um pombo ou gato desavisado que tenha sido atropelado por um bloco. Trata-se de um homem extremamente consciente, que reconhece em si mesmo o animal a exalar o cheiro putrefato.

Se houvesse humanos nas proximidades, o moribundo se envergonharia de incomodar a aristocracia carioca com seu odor inconveniente. Mas resguardado pela solidão da madrugada, ele pode manter o pouco de dignidade que lhe resta, e aceitar que está morrendo.

Levanta segurando as entranhas, como se esperasse que o fígado trocasse de lugar com o pâncreas ao menor sinal de distração sua. O homem está atento em busca do endereço de destino. Onde estará Jennifer a esta hora? Improvável que esteja em Copacabana nesta noite de Carnaval. Estará servindo um gringo neste exato momento? Não há tempo para espera. É preciso devolver-lhe a máscara e pegar o que havia lhe emprestado.

Jennifer roubara a máscara de uma viúva solitária há muitos carnavais. Surrupiara enquanto a velha dormia, e nunca se arrependera, depois que descobrira se tratar de uma madame falida que não tinha sequer dinheiro para pagá-la. Poderia ter lhe roubado as jóias, mas se contentara com a beleza daquela máscara que nunca havia visto igual.

A máscara seduzira o homem da mesma maneira que a prostituta. Na época iniciante na profissão, e portanto medrosa como todas as que começam nesta vida, a moça pedira sua arma emprestada para defender-se de eventuais violências que por ventura lhe infringissem. Em troca, oferecera como penhora o único bem em sua posse na época, a máscara. No entanto, ela teria pouca serventia em um momento fúnebre como este. Era preciso recuperar a arma, e o cheiro putrefato impunha todo o senso de urgência à situação.

Por sorte, um dos gringos à procura de sexo casual na praça havia encontrado justamente Jennifer. Devido ao seu estado alcoólico, ele ainda não havia se dado conta de que Jenny era uma prostituta, e tentava seduzi-la como a uma mulher comum. O moribundo se perguntava quanto tempo ainda demoraria para que o homem percebesse que a sedução de que Jenny precisava era constituída por US$ 70,00, mais as gorjetas pelos bons serviços prestados.

Antes, contudo, que o gringo pudesse ser iluminado com a brilhante descoberta, o moribundo vestido com a máscara interveio na conversa. Sua aparência, somada ao cheiro desconfortável que exalava, foi suficiente para fazer com que o estrangeiro resolvesse se retirar.

A Jenny também não foi preciso explicar muita coisa. Era uma amiga tão antiga – desde os tempos imemoriais em que ela não era uma prostituta e ele não era um moribundo – que reconheceria o momento de sua morte ainda que não houvesse o odor delator da decomposição. Silenciosamente, entregou-lhe a arma que estava na bolsa. Ao retirar a máscara veneziana para lhe devolver, com surpresa o moribundo ouviu, toma, é tua. Não se despediram.

Avenida Vieira Souto, 300, apto 801. Aproximou-se do portão mal iluminado do prédio e ficou a esperar o porteiro. O gordo e vagaroso guardião da morada carioca demorou em torno de 10 minutos para despertar e perceber que havia uma foliã esperando para retornar à casa. Foram mais 10 minutos para localizar o molho de chaves, necessário por conta da pane elétrica daquela noite.

Levou três tiros. O primeiro na mão direita para que fosse impedido de ligar para a polícia. O segundo na mão esquerda para o caso de ser canhoto. E o terceiro na cabeça para garantir que não acionasse a delegacia por telepatia. Prevenir é sempre melhor do que remediar.

Subir 8 andares não seria nada fácil no estado em que se encontrava. Ficou surpreso ao ver que ninguém havia acordado com os três tiros que dera e imaginou que eles poderiam ter sido facilmente confundidos com fogos de artifício. A cada lance de escada ele sentia que empestiava mais o corredor com o seu cheiro podre, e temia que fosse o cheiro, e não o barulho, que o delataria para os vizinhos do 801.

Na porta do apartamento, teve de aguardar mais 10 minutos até que alguém viesse atender a campainha insistentemente pressionada. Manteve o rosto inteiramente coberto pela máscara bem em frente ao olho mágico e esperou.

Do seu posto conseguia ouvir passos idosos se aproximando, sobrepostos à voz rouca de uma mulher que gritava com uma adolescente furiosa por ter sido desperta em plena madrugada. Os resmungos da velha iam se tornando mais audíveis conforme ela se aproximava para olhar através da porta.

Subitamente os grunhidos roucos foram interrompidos, cedendo espaço a um gemido ofegante de surpresa. Qual não foi a emoção da velha ao se deparar com a máscara que lhe havia sido roubada tantos anos atrás. O instinto senil cedeu espaço à falta de precaução, e a mulher demente abriu a porta para o mascarado.

Não gritou, nem pediu explicações. Serenamente foi conduzida ao banheiro pela autoridade da arma de fogo, empunhada com elegância feminina pela falsa foliã. Lá ficou trancada até que a ela viessem se juntar a neta aborrecente e os três poodles ridiculamente fantasiados para o carnaval.

Por alguns minutos o homem ficou sem saber o que fazer. Imaginou que estando assim tão perto da morte, talvez não fosse bom acrescentar mais 5 homicídios ao seu currículo. Ainda se perguntou, os cachorros contam? Deus vivia mandando que se sacrificassem as ovelhas, não devia ter muito apreço aos animais. Mas não estava em situação de arriscar.

Os roncos do seu estômago travavam uma disputa indômita com o seu fedor pelo posto da sensação que mais o incomodava. Mas o cheiro fétido o enjoava tanto que nenhuma refeição seria possível naquelas circunstâncias. Resolveu se banhar, na esperança de que o perfume de um sabonete pudesse ludibriar seu olfato.

Após se limpar, percebeu que seus trajes não eram apropriados para a finesse do apartamento. No armário encontrou trajes masculinos, os quais supôs serem do falecido marido da velha. O pobre defunto nunca deve ter desconfiado da máscara de fidelidade da esposa, composta por grossas camadas de rouge e pó-de-arroz poeirento.

Vestido com terno completo, agora estava digno de entrar na adega. Em meio à variedade de tintos à disposição, e dado seu total desconhecimento do assunto, escolheu os que estavam nas prateleiras mais altas, pois supôs que os mais raros e deliciosos deviam ser por conseguinte os menos acessíveis.

Precisava também de meia dúzia de queijos fedidos para compor a ceia. Após localizá-los no armário da cozinha, pôs a mesa e sentou-se para fazer a gloriosa refeição. Contava apenas com a companhia da máscara sobre a cadeira e dos choramingos dos prisioneiros do lavabo. Tão parecidos eram que já não conseguia identificar quais seriam os caninos e quais seriam os humanos. Em outros tempos, teria utilizado cinco balas certeiras para acabar com aquilo, começando pelos cachorros, esses seres odiáveis tratados como reis pela classe média carioca.

Como a proximidade da morte o deixava comovido, resolveu acabar com o incômodo ligando o som da sala. Tim Maia. Óbvio. Voltara à moda depois de alguns anos de relativo esquecimento. “Na vida a gente tem que entender/Que um nasce pra sofrer/Enquanto o outro ri”. Se foder. É por isso que pobre nesse país já nasce conformado.

Bebeu até ficar ébrio a ponto de achar que o sol raiava. Mas não era o álcool. De fato amanhecia. Tornou a vestir a máscara e aproximou-se cambaleante da varanda, levando a última garrafa em uma das mãos. A vista era um desbunde. A cidade permanecia silenciosa. Até os prisioneiros estavam calados. Temia tê-los asfixiado com o cheiro que a esta altura havia tomado todo o apartamento.

Perguntou-se quantos goles mais teria que tomar para ter a coragem de ir com a máscara de encontro ao asfalto. Apesar de quase defunto, diante da vista deslumbrante, a convicção que o guiara até o apartamento continuava acesa:

Se é para morrer como um cão, que seja como o melhor deles.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Eu sei que não te amo mais

quando passo a ver em seu corpo

apenas tecidos presos aos ossos

quando ao invés da sensualidade pulsante

de sua pele

o que sinto

é o toque de um frio organismo

quando vejo cada mitocôndria sua

produzindo ATP

para que diga as besteiras que diz

de carne e osso.

cálcio, lipídios e hormônios

uma alma?

com sorte,

talvez.